Ronald Ferreira dos Santos *
No domingo 17 de abril, a sociedade brasileira assistiu ao vivo e em cores o espetáculo em que se converteu a sessão para votar a admissibilidade do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Pôde ver o nível dos deputados e deputadas que compõem o parlamento, como se posicionam e o que pensam. Para quem só se defronta com a atuação parlamentar em momentos como este, a sensação deve ter sido de espanto. Mas são estas pessoas que aprovam as leis que governam o país.
Foi curioso ver como muitos dos votos favoráveis à cassação da presidenta foram dados em respeito aos médicos do país, numa referência indireta a uma das políticas públicas adotadas pelo atual governo para levar atendimento à saúde para milhões de brasileiros que não tinham acesso: o Mais Médicos. Imagino que todos devem se lembrar da reação violenta que parte desta categoria teve quando o governo preencheu as vagas do programa com profissionais de outros países.
A lembrança vale para contextualizar questões que não estão tendo o devido espaço no debate público – em particular pelos grandes meios de comunicação – sobre como se posicionam e o que propõem para as políticas públicas de saúde as lideranças que estão à frente da mobilização pelo impeachment da Presidenta.
Nos governos do ex-presidente Lula e da presidenta Dilma Rousseff, um elenco enorme de iniciativas inovadoras no campo da saúde e na implementação de políticas estruturantes e intersetoriais foram fundamentais para garantir um ambiente de ampliação de direitos e efetivação do que a Constituição Federal de 1988 preconizou para a Saúde. Entre elas vamos destacar aqui a criação do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência – SAMU, dos Centros de Atendimentos PsicoSociais – CAPS, do Mais Médicos, do programa Aqui Tem Farmácia Popular e tantos outros que fortaleceram o Sistema Único de Saúde.
Mas destaco, aqui, a Política Nacional de Assistência Farmacêutica, criada em 2004, que consolidou nacionalmente o entendimento no Executivo, Legislativo e Judiciário de que medicamento é um insumo garantidor do direito à saúde. Tal entendimento contribuiu para uma importante conquista, que foi a aprovação da Lei 13.021/2014 que transformou, do ponto de vista legal, a Farmácia em Estabelecimento de Saúde, uma luta que há muitos anos vinha sendo desenvolvida por vários setores sociais, em particular pela categoria farmacêutica.
Importante reconhecer as conquistas obtidas, mas também registrar que pouco ou nada se avançou para que se ampliassem os recursos a Saúde, o que compromete em boa medida as políticas neste campo, como temos alertado de forma contundente em todos os espaços e que teve como emblema o Movimento Saúde + 10. A luta por mais recursos para o SUS e por uma política de financiamento estruturante para a saúde tem sido uma ação prioritária dos segmentos que atuam em defesa do SUS.
Por isso, é fundamental alertar para o que propõe o projeto apresentado ao país pelo vice-presidente Michel Temer, que pode se tornar em pouco tempo o presidente do país. No programa Ponte para o Futuro, Temer propõe a desvinculação das receitas para a Saúde e Educação, que é um ataque despudorado ao financiamento do SUS. Essa proposta não foge ao contexto geral do que se coloca na Ponte para o Futuro: a retomada da pauta neoliberal, que prega o Estado mínimo, a desregulamentação da economia, a privatização de empresas públicas e a terceirização para o setor privado dos serviços públicos. A aposta é no mercado como polo dinâmico de toda a economia. Neste contexto, Saúde, Educação, Moradia não serão mais direitos cuja garantia deva ser dada pelo Estado.
Outro ataque aos direitos conquistados, em particular no campo do medicamento e em contraposição à da Lei 13.021 citada acima, é conduzido por um dos artífices do golpe, o senador Romero Jucá, que através do PLS 284/2015 quer liberar a venda de medicamentos em supermercados.
O principal operador político do golpe em curso contra a democracia, a saúde e outros direitos conquistados é o presidente da Câmara. Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que teve entre seus maiores financiadores de campanha empresas ligadas à saúde privada, como operadoras de planos de saúde privados. Não à toa, é o autor do Projeto de Emenda Constitucional 451/2014 Cunha que altera o art. 7º da Constituição, inserindo novo inciso, o XXXV, o qual obriga todos os empregadores brasileiros a garantirem aos seus empregados serviços de assistência à saúde, excetuados os trabalhadores domésticos, afrontando todo o capítulo da seguridade social e a seção da saúde e seus dispositivos. É o desmonte do SUS.
Tais propostas seguem ao lado de outras iniciativas que reduzem recursos para a Saúde e atacam programas. Um dos primeiros a ser desmontado, certamente será o Mais Médicos, como ficou claro pelas declarações dos parlamentares
Esse conjunto de iniciativas e propostas viola o direito à saúde conquistado na Constituição, ao dizer ser direito fundamental do trabalhador a assistência à saúde. Secciona o SUS que tem como diretriz constitucional a integralidade da atenção à saúde, ao fracionar a assistência à saúde, os seus usuários e o devedor da garantia do direito à saúde que deixa parcialmente de ser o Estado.
Outrossim, converte um direito a um serviço – pior até, converte à uma mercadoria –, fazendo virar a roda da história brasileira para trás, nos levando de volta a momentos em que a luta era para firmar a consigna de que Democracia é Saúde, como postulado na década de 80 pelos movimentos que lutaram em defesa da Reforma Sanitária.
Em momentos delicados como estes que estamos vivendo, onde o que está em jogo é a própria democracia, é indispensável reafirmar a soberania da vontade popular exercida pelo voto e alimentada pelos vários instrumentos de participação social. Na Saúde, além das conquistas já apontadas, logramos também construir um modelo de referência para a participação social, que são os Conselhos de Saúde. Mas estas conquistas hoje estão em xeque, uma vez que a democracia e o direito à saúde estão ameaçados.
Sem que haja políticas públicas para reduzir desigualdades econômicas, sociais e culturais acumuladas historicamente o exercício da democracia fica comprometido. Por isso, no curso de um golpe e na eminência da ascensão de um governo ilegítimo, a luta prioritária do movimento social brasileiro é a luta em defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito, que se materializam na defesa do direito à Saúde, pautas que unificam a sociedade e permitem ampla mobilização social.
Não vai ter golpe! Democracia é Saúde!
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